A Substância (2024)

A Substância (2024), dirigido por Coralie Fargeat, é uma obra que mergulha profundamente nas águas turvas do body horror e da crítica social, tecendo um thriller ácido que expõe os padrões inatingíveis de beleza impostos pela sociedade. Em vez de se limitar a uma narrativa linear, o filme se desdobra como uma revista de moda perturbadora, onde os editoriais são grotescos, repletos de carne dilacerada e ilusões vendidas como promessas de juventude eterna. Cada cena é um quadro visceral, uma mistura de crítica mordaz e beleza trágica, que desafia o espectador a encarar as consequências de uma cultura obcecada pela perfeição.

Imagine a abertura: a câmera desliza em câmera lenta sobre a Calçada da Fama, banhada pela luz difusa do amanhecer. Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma antiga estrela de Hollywood, caminha com passos lentos e pesados, carregando não apenas as marcas de uma carreira brilhante, mas também o peso do tempo que insiste em avançar. Seu rosto, outrora símbolo de beleza intemporal, agora reflete a luta contra a obsolescência imposta por uma indústria implacável. A cada passo, a câmera captura os detalhes de seu corpo e expressão, revelando a fragilidade por trás do glamour.

À medida que a narrativa se desenrola, A Substância se transforma em um filme de arte visceral, onde a linha entre a realidade e a ilusão se dissolve. As cenas são construídas como quadros impactantes, cada um carregado de simbolismo e crítica. A carne dilacerada, as cirurgias plásticas grotescas e as promessas vazias de rejuvenescimento são expostas sem pudor, criando um retrato perturbador de uma sociedade que consome e descarta corpos em busca de uma beleza impossível. Fargeat não apenas questiona os padrões de beleza, mas também explora o preço emocional e físico que eles cobram, transformando o filme em uma experiência cinematográfica que é tanto chocante quanto profundamente reflexiva.

Após ser demitida de seu programa de aeróbica – um triste eco da era de Jane Fonda –, Elisabeth Sparkle se vê encurralada pelo desprezo e pela pressão implacável de um sistema que celebra a juventude. É nesse momento que surge, como um anúncio sedutor em uma revista de luxo, a proposta de redenção: uma droga clandestina, a própria "Substância", capaz de replicar suas células e dar à luz uma versão mais jovem e estonteante dela mesma. Prometendo não apenas rejuvenescer, mas criar um eu melhor e mais perfeito, o produto revolucionário desencadeia um processo quase mítico. Em um dos momentos mais cinematográficos do filme, a câmera foca em uma injeção que abre literalmente uma fenda nas costas de Elisabeth, revelando Sue (Margaret Qualley) – a personificação da juventude prometida, mas também o início de uma jornada perturbadora e visceral.

A cada sete dias, as duas faces de uma mesma alma se alternam no protagonismo. As regras impostas pela droga são rígidas: enquanto uma delas desperta para brilhar novamente nos holofotes, a outra mergulha num sono profundo, desvanecendo-se em sombras. Essa alternância não é apenas um dispositivo narrativo, mas uma metáfora potente para a dualidade imposta pela sociedade – o eterno conflito entre o ideal de beleza inatingível e a realidade implacável do envelhecimento. Em cenas marcadas por cortes precisos, a câmera se aproxima dos detalhes: o close na pele que se desfaz, os olhares carregados de inveja e desespero, os gestos que contam histórias sem precisar de palavras.

O filme transborda metáforas visuais, em um espetáculo de body horror que remete a Cronenberg, mas com uma estética que poderia sair direto de um comercial de cosméticos. A câmera desliza pelos corpos como se vendesse um produto, capturando cada detalhe com uma sensualidade quase publicitária – até que a pele se rasga, e a verdade se revela. Essa dualidade entre o glamour superficial e a violência visceral cria uma experiência cinematográfica que é tanto perturbadora quanto fascinante, expondo as entranhas de uma cultura obcecada pela perfeição física.

Coralie Fargeat comanda a direção com a audácia de um cineasta que não teme o grotesco. Cada cena é composta com a precisão de um pintor: a iluminação cria contrastes dramáticos, revelando tanto a fragilidade quanto a força dos personagens. O uso quase exclusivo de efeitos práticos – onde sangue, próteses e maquiagem se unem para criar imagens de horror e beleza – transforma o filme em uma experiência sensorial única. É como se cada gota de sangue derramada e cada deformidade visual fossem pinceladas de uma obra que denuncia, de forma crua e poética, a obsessão pela perfeição.

Mais do que um espetáculo de body horror, A Substância é uma crítica afiada aos padrões estéticos e à crueldade de um sistema que descarta as mulheres ao marcarem a passagem do tempo. Por trás do terror físico, há um comentário mordaz sobre a indústria do entretenimento e como a sociedade descarta mulheres à medida que envelhecem. Enquanto Elisabeth luta para recuperar sua antiga glória, o filme revela, em uma montagem poderosa, a dura realidade de um mundo onde a juventude é venerada e o envelhecimento, condenado. A narrativa se desenrola como uma fábula moderna, onde o horror físico se funde com o drama interior, criando uma experiência cinematográfica que é ao mesmo tempo perturbadora e profundamente humana.

O filme empilha camadas de metáforas viscerais e críticas afiadas, até desembocar em uma conclusão tão impactante quanto inevitável. Em suma, A Substância é uma jornada visual e emocional que desafia os limites do gênero, transformando cada cena em um convite para refletir sobre a efemeridade da beleza e o preço da fama. É o tipo de filme que faz o espectador vibrar com cada corte, cada enquadramento – e, sobretudo, com a coragem de encarar a verdade nua e crua que se esconde por trás do brilho enganoso de Hollywood.

“A Substância” é, no fim, uma edição de revista que começamos folheando por curiosidade, mas da qual não conseguimos desviar o olhar – mesmo quando a página se encharca de sangue.

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