Pleasure (2021)
Desde os primórdios da imagem em movimento, o corpo da mulher tem sido uma espécie de altar e de armadilha. No cinema, ele foi pintado com a luz do desejo masculino — moldado, cortado em close, perseguido pela câmera como quem caça.
Pleasure (2021), da diretora sueca Ninja Thyberg, mergulha com olhos abertos e feridos nesse poço profundo onde o feminino é embalado como produto e entregue como espetáculo.
A protagonista, Bella Cherry (Sofia Kappel), não é uma vítima passiva — ao contrário, entra na indústria pornô movida por ambição. Mas rapidamente percebe que para subir nesse mercado, precisa não apenas entregar o corpo, mas performar um roteiro de submissão, dor e fragilidade que já vem pronto, plastificado e perversamente rentável. A câmera de Thyberg não julga, nem erotiza. Apenas mostra. E isso, por si só, é revolucionário.
O filme revela a indústria pornográfica como uma engrenagem que digere a subjetividade feminina para cuspir estereótipos que vendem. O corpo ali não é só corpo — é mercadoria que se dobra ao desejo alheio. E o que se espera dele não é prazer real, mas uma coreografia encenada da resistência e da entrega.
O "não" que vira "sim", o choro que excita, a dor convertida em clímax. E
nesse roteiro, a fragilidade não é acidente — é peça chave. Porque o
mito da mulher frágil é útil demais para ser abandonado. Ele sustenta a
fantasia do poder masculino como necessário. Uma mulher que cai precisa
ser erguida. Uma mulher que chora precisa de um ombro —
preferencialmente, masculino.
Essa fragilidade performada transforma a dominação em erotismo. Faz com que o controle pareça ternura e a violência disfarçada de afeto. E aqui está o nervo exposto: a mulher não nasce frágil. Ela aprende a ser. Aprende a dobrar o corpo e baixar a voz. Aprende que ser forte demais afasta, assusta, desacredita. Que a força só é bem-vinda se vier temperada com graça, beleza e sorriso. Que, para ser desejada, talvez seja melhor parecer à beira do colapso — mas com cílios impecáveis.
Pleasure expõe essa lógica sem filtros, sem apelos. O corpo feminino ali é uma superfície de projeção, mas também um campo de resistência. Bella, ao tentar se afirmar como “profissional”, descobre que até sua força precisa ser dosada. Forte o bastante para aguentar a cena. Fraca o bastante para parecer domável. É um jogo sujo, onde o prazer é sempre de quem assiste, nunca de quem vive, e isso ecoa para além do pornô.
O cinema inteiro, por décadas, treinou o olhar do espectador para desejar a mulher em pedaços. Em câmera lenta e em silêncio. O choro contido, o vestido rasgado, o sangue na bochecha. O sofrimento feminino virou linguagem visual e estética. E mais uma vez, o masculino dominava não com o corpo, mas também com o olhar.
Thyberg, no entanto, devolve o olhar para a mulher. Não há fetiche no seu foco. Há crueza, desconforto e coragem de filmar a mulher não como musa ou vítima, mas como ser contraditório, resistente, ambicioso, e profundamente consciente de que seu corpo é campo de batalha.
O filme não oferece saída — muito menos redenção. Mostra apenas que a fragilidade pode ser uma máscara — e que por trás dela existe uma força que não é erotizável, mas perigosa. E talvez, no fundo, seja isso que sempre se temeu: uma mulher que diz “não” e quer dizer “não”. Uma mulher que olha de volta e que não performa a dor para excitar. Que não chora para ser salva. Que não quer caber em moldura nenhuma.
O cinema precisa reaprender a ver a mulher. Não como símbolo, mas como superfície e presença. Pleasure é esse espelho maldito que devolve a imagem sem embelezar. Um filme que, ironicamente, não tem prazer nenhum — e por isso mesmo, nos obriga a encarar o que realmente existe por trás do desejo fabricado.